Viver riscos e sentir os pés "sujos"
- Juliana Sae

- 24 de fev. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 18 de ago. de 2022
O que venho aprendendo e desconstruindo em relação às palavrinhas tão temidas no mundo dos adultos e tão essenciais no mundo das crianças: errar e sujar.

"Sem desafios, crianças se tornam com medos de riscos, psicologicamente frágeis e ansiosas. Isso diminui seu desenvolvimento de identidade e senso de realização. É importante que os pais não superprotejam seus filhos pequenos de decepções ou desconfortos pois é através da falha que nós aprendemos a dar conta. Ao aprendermos a dar conta, nos tornamos aventureiros o suficiente, para mais tarde na vida, vagar no mundo em busca de nossas almas."
Do livro Nature and The Human Soul - Bill Plotkin
// O autor tem toda uma concepção de alma como sendo nosso lugar no mundo, aquilo que viemos nessa vida para ser/fazer/viver/contribuir. Alma aqui pode ser entendido como achar nosso nicho ecológico, nosso propósito, nossa missão.
A IMPORTÂNCIA DE FALHAR
Tentar levantar para andar pela primeira vez e cair muitas e muitas vezes. Tentar subir na árvore pela primeira vez e arranhar um tiquinho a mão. Falhar algumas vezes até conseguir colocar os sapatos sozinha, no seu ritmo e no seu tempo. Ser criança é estar mergulhado num universo de descobertas, brincadeiras, imaginação, afeto, primeiras vezes e aprendizados. Tudo isso rodeado por ela, uma palavrinha pequena e tão temida pelo mundo dos adultos: a falha. Antes de conseguir fazer ou aprender algo, a criança falha muitas vezes, sente desconforto e se decepciona.
Ler essas palavras das quais tanto tentamos fugir na vida adulta dá até um friozinho na barriga, né? Dá vontade de impedir a criança de sentir tudo isso porque é ruim, porque machuca. Venho entendendo que o papel de um adulto cuidador não é eliminar tudo isso, mas guiar e acolher o serzinho enquanto tudo isso acontece e deixá-lo sentir o que precisa sentir na hora.
Me mudei de São Paulo depois de 12 anos vivendo na capital e hoje estou morando em um sítio na Bahia. Com essa experiência, somada a viajar 45 dias passando por RJ, MG e BA em um Uninho e estudando bastante sobre infâncias livres na natureza, hoje tenho a percepção que estar preparado para falhar está muito relacionado ao quanto estamos acostumados a viver no desconforto e a nos colocar em situações de risco. A sentar na sala com algo incômodo, que não sabemos fazer e o qual vai exigir uma musculatura (do corpo e da alma) para ser aprendido e virar "gostosin" de viver.
// Quando digo risco me refiro à algo que nos desafie, não algo perigoso. Mais pra frente vou falar um pouquinho mais sobre essa diferença entre risco e perigo.
Me percebo aprendendo a viver sem tanto conforto, ou na verdade, ressignificando o sentido dessa palavra.. E com o crescimento da minha tolerância para o que há pouco tempo me deixava desconfortável, está crescendo juntinho dela o quanto me sinto mais conectada com meu entorno, com meu corpo e com o pulsar da vida. Sair da zona de conforto me desafia, me coloca em riscos e me põe a sentir coisas que não quero sentir por medo ou desconhecimento, mas que no fim do dia, resultam em expansão, fortalecimento e confiança em mim mesma, me passando a seguinte mensagem: dou conta e posso confiar em mim mesma para transpor minhas limitações.
Estar longe da minha rede de apoio, picadas, banho gelado, mudança de trabalho, calor, mais picadas, lama, capim, usar uma enxada, trabalhar na chuva, caminhar para ter acesso à internet, carregar peso, não ter geladeira, algumas bolhas na mão, a baratinha que acompanha o momento do coco no banheiro seco, o cheiro de gente humana que mexe o corpo e as vezes a gente nem lembra mais como é de tanto desodorante e perfume: exemplos de coisas que andam chacoalhando a Juju adulta da cidade que veio morar no mato e tá descobrindo "aguentar "muito mais daquilo que pensou aguentar ou aprendeu ser "inaguentável".
Falha, desconforto e pés sujos. Senti de escrever esse texto porque tudo me parece se relacionar muitíssimo, além de serem coisas possíveis de se cuidar na infância a fim de os pequenos de hoje crescerem adultos capazes de gerir suas emoções, de falhar - e aprender com isso - , de conseguir viver uma vida sem excessos e que estejam conectados com seus corpos e com a Natureza. E na Natureza tem lama, tem água, tem bicho, tem cheiro, tem picada, tem chuva que é gostosa de sentir, tem chuva que dá medo, tem chuva que é desconfortável, tem um mundo inteiro para ser explorado, para nos desafiar e nos colocar em situações de risco e logo, de expansão.

RISCO X PERIGO
Terminei um curso hoje chamado Natureza Educadora, do Instituto Romã. Foram encontros ricos de aprendizados e insights e em um deles em particular, falou-se muito sobre riscos, o que me levou a ter todas essas reflexões e correlacionar tantas percepções recentes. Ouvindo tantas educadoras compartilharem suas experiências, percebi que alguns dos grandes desafios de uma educação com e na natureza, é tirarmos da nossa mente a ideia dos espaços naturais serem sujos e perigosos, de que subir em árvore é algo proibido porque pode cair e machucar, que deixar a roupa toda cheia de barro é algo a ser evitado e que uma aranha por perto é motivo de pânico e paralisia.
Vivemos numa época onde confundimos o que é natural e o que é normal. É normal crianças brincarem em ambientes fechados, com brinquedos de plástico piscantes, terem medo de bichos voadores e não saberem muito bem se seus alimentos vêm do supermercado ou da terra.
Normal, mas não natural.
Me parece natural uma criança colocar seus pés e mãos pro jogo, tocar a grama, respeitar e observar os demais seres - mais que humanos - que também habitam seu território e subir em árvores porque foi guiada e amparada por um adulto que confia nela.
Natural, mas não normal.
A gente anda com bebê num carro à muitos km por hora
mas tem medo de colocar ele na grama deitadinho
pra ver o céu porque pode ter bicho.
A gente tem medo dele ser picado por uma cobra
mas não temos medo de deixar pequenos olhinhos em formação
passarem horas e horas em frente à uma tela todos os dias.
Normal, mas não natural.
O medo da cobra é um medo real. Eu sinto, fico atenta ao andar na trilha e bato as botas antes de calçar. Assim, esse medo vai virando atenção, presença e respeito à cobra ao invés de aversão ou desespero. Medo que não paralisa mas nos guia é um medo saudável, que nos faz estar em um ambiente natural de maneira respeitosa e consciente. De quem tem ciência de ali existirem riscos mas que também sabe: uma vida sem eles, é uma vida confortável demais - e conforto demais..não me parece bão. O saldo de tanto conforto e praticidade da vida moderna anda machucando a gente e o planeta. Ensinar a criança a estar presente e atenta nos espaços que habita é diferente de ensiná-la a ter medo de cobra porque pode machucar.
No curso, a Ana Carol Thomé (do projeto Ser Criança É Natural) fez uma distinção entre risco e perigo que achei maravilhosa:
• Risco é tudo aquilo que vai nos desafiar a fazer mas que nos trará algum aprendizado.
• Perigo é algo que não vale a pena fazer, porque pode nos machucar sem trazer aprendizado algum.
Uma criança subir em uma árvore ou fazer uma caminhada em uma trilha é arriscado? Sim, mas não perigoso. Perigoso seria se estivesse chovendo com trovões, se o galho da árvore estivesse visivelmente frágil ou se ela não tivesse sido ensinada a sempre prestar atenção onde colocar a mão no tronco de árvore para não se machucar com algum bicho (e também não machucá-lo).
É arriscado? É, mas se viver essa experiência vai me proporcionar algo bom pro meu desenvolvimento, então escolho fazer. É perigoso? Sair na chuva com trovões é perigoso então não vou e aguardo o momento onde isso seja possível.
Contenção de riscos e de acidentes é algo que a gente deveria aprender a fazer com tudo, na vida adulta e principalmente quando tem criança por perto. Mas prever, conter quando preciso e estar atento é bem diferente de viver com medo, de proibir e de não orientar para fazer de forma segura.

"SUJAR" DE LAMA E ÁGUA
Tive a sorte de conviver com crianças que terminavam o dia bem das "sujas" e foi incrível.
A boca com manchinhas de manga que colhemos na trilha e comemos logo depois do banho no rio.
A mão vermelha de urucum depois de colher e pintar o rosto com a sementinha.
O pé com barro depois de pular na poça no meio do caminho.
O bumbum da calça com terra depois de sentar no chão e brincar de foguete.
O dedo com giz verde depois de aprender a desenhar um sapo com formas geométricas.
A roupa toda marrom depois de um dia de muita brincadeira, exploração e "primeiras" vezes.
Usei o termo sujo porque estamos acostumados e porque foi como eu falei até pouco tempo. Hoje vejo de outra forma. Criança que tá sempre de sapato no pé e com a roupa limpinha, me parece ser uma criança que não tá vivendo algumas experiências tão importantes dessa fase da vida: se movimentar, estar no chão, lamber, tocar, sentir e principalmente, estar em espaços abertos, vivos e naturais.
Tô desconstruindo em mim muitas coisas para olhar pras crianças sem um olhar de contenção, mas de guiança, de liberdade. Minha mãe sempre falava: vai lá e faz: se sujar a gente limpa e se estragar a gente conserta. Deveria ter anotado porque parece que na vida adulta esqueci! Feliz - e aliviada- por estar relembrando a importância dessas palavras.
Ter experiências de se movimentar livremente,
de aprender com seu corpo e com seu entorno,
de estar em espaços onde adultos garantam sua segurança
- que não é sobre estar atrás dela o tempo todo -
estabelecendo uma relação de confiança,
dizendo as vezes verbalmente e as vezes com um
gesto ou um olhar "eu confio em você".
Tudo isso é algo que deveria popular a infância, para a criança crescer segura, consciente de seu corpo, se sentindo confiante e capaz de correr riscos e aprender com suas falhas, com conhecimento da potência de seu corpo, respeitando seus limites e ao mesmo tempo tendo coragem de transpô-los e expandir quando chegar a hora.
O mundo precisa de adultos conscientes de suas próprias emoções, sentimentos e potências para fazer a gigantesca transformação que precisamos fazer. Joana Macy chama de a Grande Virada. Me parece que para isso, as crianças precisam ser guiadas por adultos em contato com suas emoções e que saibam viver na imprevisibilidade da vida. Que saibam que espiritual e material são uma coisa só e que a coisa mais importante a ser feita agora é criar uma forma de existir e estar nesse planeta que dê suporte e apoio à vida, e não o contrário, como estamos fazendo.
Que possamos aprender mais e mais sobre a infância, as crianças e como guiar esses serzinhos para esse grande papel de cuidar de seus lares: seus corpos, suas comunidades, suas mentes, suas almas e nosso planeta.




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